Quando o tudo e o nada deixam de ser meras noções abstratas.
Recordo-me de uma dessas noites de verão, quando no Brasil não são raras as enchentes e inundações, e eis que um repórter televisivo, fazendo o seu trabalho, interpela uma senhora, moradora de uma casa extremamente humilde, que estava a lamentar os estragos causados pela chuva: “Perdi tudo!” – foi o que ela disse. Mas como pode alguém que praticamente não tem nada, lamentar que perdeu tudo? Nessas horas não dá para trabalhar com as noções de tudo, nada, muito, pouco, mais, menos... e não se trata de relativismo, mas da força das vísceras a estraçalhar nosso platonismo, a transmutar valores e transversalizar linhas de pensamento. O Haiti ainda vai permanecer na linha de frente dos grandes e pequenos noticiários, mas até quando? Talvez pelo tempo que nos for possível suportar os efeitos deste acontecimento devastador de maneira meramente abstrata. Mas e depois? O destino dos grandes fatos noticiados é o mesmo dos pequenos: o esquecimento.
4 comentários:
Caro, talvez você se acostume com o novíssimo layout que acaba de estrear.
Fato é que o blog, à maneira clássica, encerrou-se. Agora é um depósito de textos.
Textos novos virão - dentro de algumas semanas, publicarei uma carta-manifesto sobre o meu novo projeto...
Abraço,
J.
Lembrei-me de Short Cuts (1993) de Robert Altman: o filme mostra esse envolvimento abstrato com a dor e, ao mesmo tempo, o alheio ao concreto...
E no entanto, sem qualquer cinismo, não será o esquecimento essencial à continuação da vida (bem dentro das teses nietzscheanas)? Não será que quem "perdeu tudo" tem também de se esquecer dessa perda, bem mais essencial com diz do que a perda metafísica de que nos ocupamos às vezes, para poder recomeçar, ainda que nunca supere essa linha, abstracta para quem tem internet de alta velocidade, que se chama pobreza?
Jason (Manuel Carreiro): O que vi até agora em seu blog muito me encantou. Agora está bem melhor, na minha opinião à etapa logo anterior. Me refiro ao layout, pois a qualidade de seus escritos é indiscutível. Abz.
Garrocho:Os acontecimentos grandes e pequenos me afectam de modo diferente e às vezes indiferente à grandeza/pequeneza enquanto acontecimento. Agora, tragédias descomunais me deixam sem poder de abstração, ao mesmo tempo em que sem abstração... como suportar? Oh, Short Cuts! Excelente conexão!
Dionisio, bem apontado, é exatamente aí que surge o problema... ao mesmo tempo abstrair buscando uma saída e ao mesmo tempo levar a Vida ao abstrato tal como um congelamento contra a Vida. E Nietzche nos (des)orienta bem nessa encruzilhada.
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