terça-feira, 18 de maio de 2010

Freud e a psicanálise no centro do ringue novamente.


N’outro dia me indagaram, mais uma vez, se Freud estaria ultrapassado, se a psicanálise freudiana já teria caducado, ou seja, não se aplicaria aos problemas dos nossos tempos. Não é a primeira vez nem será a última que me fazem este tipo de pergunta. Nesta feita, a pergunta me foi apresentada por uma pessoa sem formação em psicologia ou afins e que faz análise (psicanálise) já há alguns anos, o que num primeiro momento me deixou apenas um pouco espantado, mas não totalmente. O que de fato me deixa espantado é a quantidade de pessoas supostamente esclarecidas que conheço, que em meio à avassaladora enxurrada informacional de nossos tempos, não sabem a diferença entre psicologia, psicanálise e psiquiatria (algumas inclusive com formação em áreas afins ao mondo psi). Suponho que parte desse desconhecimento seja fruto das próprias querelas dentro e entre estes campos de formação e atuação componentes do mondo psi. Querelas estas apimentadas e somadas ao gosto refinado comum aos seus representantes de conservarem, à sombra do sigilo, as informações acerca de suas fronteiras de definição, semelhança e diferença. Não vou aqui destrinchar estes campos de formação e atuação devido à vasta e acessível bibliografia a respeito, apenas gostaria de deixar registrado o acontecimento, certo que estou de que isso ocorre com farta freqüência mundo afora.

Vocês devem estar se perguntando a respeito da resposta que dei à referida indagação que me foi feita. Na realidade o que se seguiu foi um animado diálogo, pois conversações acerca de assuntos relacionados ao mondo psi em muito me alegram. O mondo psi é notoriamente um campo minado, em guerrilha permanente... vivo, incandescente. Isso ajuda e atrapalha, trata-se de um contínuo work in progress, pois a construção de objetos de pesquisa, metodologias, conceitos, técnicas, dispositivos, etc. acontece sem cessar, muitas vezes de modo atribulado, mas entre mortos e feridos há muitos avanços a se considerar.

Acerca da psicologia, às vezes me pergunto se a formação do psicólogo não tende a levá-lo ao exagero da solidão (e há vários tipos de solidão!). De fato é pouco comum avistarmos psicólogos trabalhando juntos por longa data (mas qual é mesmo a melhor duração para uma aliança?). No mais das vezes, a defesa do argumento técnico, da capacidade aguçada de perceber aquilo que acontece às costas do observador, cria atritos entre aqueles que trabalham quase o tempo todo no território das singularidades, do infinitesimal, do intangível, do inexato (ciência das singularidades, a psicologia, na grande maioria de seus modos de ação é avessa a generalidades). Considero a psicologia como a ciência dos que não têm pressa (e a pressa como franca inimiga das velocidades).

Com respeito à psicanálise é curioso como de tempos em tempos esta sofre algum tipo de ataque, revés e parafraseando Nietzsche, aquilo que não mata, fortalece... ou pelo menos faz sair dos guetos. Inúmeros livros-bomba, que se diferenciam entre si pelo conteúdo, estratégia e época de publicação, tais como “O psicanalismo” de R. Castel, “O Anti-Édipo” de G. Deleuze e F. Guattari na década de 1970, “L'anti-Freud” de M. Lobrot em 1998, “Le livre noir de la psychanalyse” de C. Meyer em 2005, surgem de vez em sempre a disparar incandescentes discussões, algumas que inclusive, volta e meia, se atualizam em mesas redondas, salas de aula, congressos, etc. Desta feita, o protagonista da vez é o filósofo Michel Onfray, cujos livros e atuação como fundador e animador da Université Populaire de Caen me parecem interessantes. Pois bem, o Sr. Onfray publicou recentemente na França um livro-bomba, que ainda não tive a oportunidade de ler, chamado “Le crépuscule d'une idole. L'affabulation freudienne”. Onfray é um filósofo adequado às máquinas de nossos tempos, sendo afeito às potencialidades midiáticas, tanto que um debate se iniciou pela TV, rádio, Internet, revistas e jornais mundo afora no qual este pensador e personalidades afins ou não à psicanálise têm sido vistas na linha de frente deste aquecido debate. Imediatamente após a publicação deste livro a historiadora e psicanalista Elisabeth Roudinesco, cujo trabalho de escritura também me encanta, publicou o texto “Porquoi tant de haine?” que foi devidamente respondido por Onfray através do artigo “Roudinesco sur Onfray” . Cabe ressaltar que antes da publicação deste livro-bomba um debate em vídeo na revista Philomag entre Onfray e Jacques-Alain Miller intitulado “En finir avec Freud?” já preparava o terreno para o diálogo aquecido do livro por vir, ou seja, já havia fumaça no ar. O debate está lançado novamente.


terça-feira, 11 de maio de 2010

Dodó o destemido, não necessariamente, corajoso


Deleuze, em uma de suas aulas sobre Spinoza datada de 24/01/1978, ressaltou que quando um filósofo utiliza duas expressões distintas, duas palavras, mesmo que parecidas em sua grafia e nos sentidos que possam evocar, ainda assim, serão duas palavras diferentes, especialmente quando se tratar de conceitos. Ele chamava a atenção para algumas traduções de affectus e affectio, ambas traduzidas como afecção, quando na realidade o polidor de lentes, Spinoza, se referia em seu texto escrito em latim aos conceitos de afeto, para o primeiro e afecção para o segundo. Conceitos com vida própria, cada qual disparando uma multiplicidade de sentidos, embora ambos imanentizados na obra spinozista. Eis um dentre vários exemplos de como as traduções podem fabricar falsos sinônimos.

De minha parte, tenho pensado seriamente em abolir a utilização de sinônimos em meu discurso, pois estes costumam mais complicar do que ajudar na comunicação. Ou talvez restringir os sinônimos a textos literários, poesias... e em escritos, digamos, técnicos, darei urros de longa vida à cacofonia provocada pela repetição do mesmo som de palavra, de uma mesma palavra em loop, a “repetir, repetir, repetir até ficar diferente – repetir é um dom do estilo”, tal como Manoel de Barros. É que gosto mesmo do sabor-saber que nos sugere Barthes, da ambigüidade, do duplo sentido, da vertigem que nos atravessa quando aderimos à multiplicidade como paradigma de expressão e sensibilidade. E uma palavra, cada uma, já traz em si e é ao mesmo tempo atravessada por um oceano multi-planetário de sentidos, uma multiplicidade como universo referencial.

Dodó, o destemido, não foi o que poderíamos chamar de sinônimo de corajoso. Tampouco o Dodó a que me refiro neste texto tem qualquer relação com o jogador de futebol brasileiro cujo apelido é Dodô. Aliás, me informa a Wikipédia, que o destemido Dodó também pode ser chamado Dodô, estando o primeiro termo em português europeu e o segundo brasileiro... ok. Dodó (Raphus cucullatus), também conhecido por Dronte... quantos nomes para esta ave cujas afecções, em virtude das asas curtas e do bico longo e pesado, não contemplavam a potência de ação legítima do voar. Uma ave não-voadora, tal como as nossas galinhas, embora o Dodó seja da família dos pombos, logo, está longe de ser um “sinônimo” de galinha.

Os Dodós habitavam as Ilhas Maurícias, na costa leste do continente africano, e foram extintos na metade do século XVII (coincidentemente o mesmo século de existência de Spinoza) época em que estas aves conviveram com colonizadores portugueses que aportaram por estas ilhas desde o século XVI. Segundo estudiosos, estas aves eram destemidas, não tendo medo das pessoas que chegavam às ilhas nem de seus cães e porcos. Ser destemido está longe de ser corajoso, embora estas duas expressões sejam em muitos casos tratadas como se fossem uma, sinônimo da outra. Ser destemido significa apenas ser desprovido de medo e muitas vezes é do medo que extraímos as potências do que chamamos coragem. Há de se ter coragem inclusive para se traçar uma linha de fuga.

Sendo a afecção em Spinoza o estado de um corpo sofrendo a ação de um outro corpo, é possível que o encontro entre os homens e os Dodós possa ser chamado de um mau encontro, especialmente para estas aves à medida em que concorreu para a diminuição na potência de ação dos Dodós e a extinção da espécie. Um encontro entre dois seres de espécies distintas, os Dodós e seu desengonçado passo, bico pesado e longo a chafurdar pelo chão com o homem, seus cães, seus porcos, seus hábitos e sua fome de colonização.

terça-feira, 4 de maio de 2010

O Rock and Roll e o desassossego


“I believe I can see the future
Cause I repeat the same routine
I think I used to have a purpose
But then again
That might have been a dream
I think I used to have a voice
Now I never make a sound
I just do what I've been told
I really don't want them to come around
(…)
Every day is exactly the same
There is no love here and there is no pain”
Every Day Is Exactly The Same - NIN


O Rock and Roll talvez não venha a salvar o mundo, mas em meio às coisas do mundo, procuro estabelecer alianças com aquilo pode produzir sentido, que nos mobiliza, nos incentiva a pensar, a sentir, e vez por outra é justamente da música que surgem interessantes indagações. Leia o fragmento de letra acima cuja força de um lamento denuncia a despotencialização de uma repetição sem sentido.

Algo parecido aparece no fragmento de letra de música abaixo.


“Always stays the same, nothing ever changes
English summer rain seems to last for ages
(…)
Hold your breath and count to ten
And fall apart and start again,
start again, start again…”
English Summer Rain – Placebo


Agora, cabe mencionar que há um quê de Rock and Roll em certos fragmentos extraídos de filósofos, especialmente os que flertam com o desassossego da produção de diferença.



E se na hora sem sombras um demônio se esgueirasse em tua mais solitária solidão e te dissesse: "Esta vida, assim como tu vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes: e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indivisivelmente pequeno e de grande em tua vida há de te retornar, e tudo na mesma ordem e seqüência - e do mesmo modo esta aranha e este luar entre as árvores, e do mesmo modo este instante e eu próprio. A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez - e tu com ela, poeirinha da poeira!". Não te lançarias ao chão e rangerias os dentes e amaldiçoarias o demônio que te falasses assim? Ou viveste alguma vez um instante descomunal, em que lhe responderias: "Tu és um deus e nunca ouvi nada mais divino!" Se esse pensamento adquirisse poder sobre ti, assim como tu és, ele te transformaria e talvez te triturasse: a pergunta diante de tudo e de cada coisa: "Quero isto ainda uma vez e inúmeras vezes?" pesaria como o mais pesado dos pesos sobre o teu agir! Ou, então, como terias de ficar de bem contigo e mesmo com a vida, para não desejar nada mais do que essa última, eterna confirmação e chancela?
Aforismo 341 – A Gaia Ciência – Nietzsche


O Rock and Roll pode, desde a sua invenção, produzir desassossegos, num sentido Nietzschiano, tal como Wagner à época desse filósofo bigogudo, Nietzsche, que manejava um martelo, tal como se fosse uma guitarra, a quebrar os conceitões absolutos do conhecimento e da cultura hegemônica de sua época. Certos petardos filosóficos são tão potentes quanto os riffs ou solos de uma guitarra: toda uma Pop’Filosofia.

A música e seus perceptos, blocos de sensações, a matéria prima para a evocação de ritornelos... lembro-me de várias cenas do filme Dançando no Escuro, dirigido pelo polêmico cineasta dinamarquês Lars Von Trier, em que Björk, em atuação esplendorosa, cantarola enquanto repete movimentos braçais em uma linha de produção de uma fábrica de panelas. Enquanto cantarola, a personagem experienciada pela cantora-atriz islandesa se projeta, em meio a delírios ou sonhos (escolha o que lhe convier), tal como se estivesse participando de um musical. Daí a traçar uma linha de fuga em que ela sai de cena, sai do corpo da fábrica, da boca da máquina que tritura metais em repetição, ainda na fábrica, sai permanecendo lá, e sem imitar um tipo-dançarino de musical, ao mesmo tempo em que se conectando às forças de uma dança rebelde, a personagem quase cega enxerga um possível naquele mundo de repetição infindável: da produção de diferença, ou a delicada arte de empurrar os impossíveis na invenção de saídas, criando rupturas a trincar o cotidiano quando este nos sufoca e por suas brechas fazer escoar um som, um gemido que seja, em tom celestial.

Sugiro aos leitores que busquem as músicas cujos fragmentos aqui copio, assim como este aforismo nietzschiano acima. O agenciamento entre música e filosofia, perceptos e conceitos, pode devir assaz intenso.