terça-feira, 11 de maio de 2010

Dodó o destemido, não necessariamente, corajoso


Deleuze, em uma de suas aulas sobre Spinoza datada de 24/01/1978, ressaltou que quando um filósofo utiliza duas expressões distintas, duas palavras, mesmo que parecidas em sua grafia e nos sentidos que possam evocar, ainda assim, serão duas palavras diferentes, especialmente quando se tratar de conceitos. Ele chamava a atenção para algumas traduções de affectus e affectio, ambas traduzidas como afecção, quando na realidade o polidor de lentes, Spinoza, se referia em seu texto escrito em latim aos conceitos de afeto, para o primeiro e afecção para o segundo. Conceitos com vida própria, cada qual disparando uma multiplicidade de sentidos, embora ambos imanentizados na obra spinozista. Eis um dentre vários exemplos de como as traduções podem fabricar falsos sinônimos.

De minha parte, tenho pensado seriamente em abolir a utilização de sinônimos em meu discurso, pois estes costumam mais complicar do que ajudar na comunicação. Ou talvez restringir os sinônimos a textos literários, poesias... e em escritos, digamos, técnicos, darei urros de longa vida à cacofonia provocada pela repetição do mesmo som de palavra, de uma mesma palavra em loop, a “repetir, repetir, repetir até ficar diferente – repetir é um dom do estilo”, tal como Manoel de Barros. É que gosto mesmo do sabor-saber que nos sugere Barthes, da ambigüidade, do duplo sentido, da vertigem que nos atravessa quando aderimos à multiplicidade como paradigma de expressão e sensibilidade. E uma palavra, cada uma, já traz em si e é ao mesmo tempo atravessada por um oceano multi-planetário de sentidos, uma multiplicidade como universo referencial.

Dodó, o destemido, não foi o que poderíamos chamar de sinônimo de corajoso. Tampouco o Dodó a que me refiro neste texto tem qualquer relação com o jogador de futebol brasileiro cujo apelido é Dodô. Aliás, me informa a Wikipédia, que o destemido Dodó também pode ser chamado Dodô, estando o primeiro termo em português europeu e o segundo brasileiro... ok. Dodó (Raphus cucullatus), também conhecido por Dronte... quantos nomes para esta ave cujas afecções, em virtude das asas curtas e do bico longo e pesado, não contemplavam a potência de ação legítima do voar. Uma ave não-voadora, tal como as nossas galinhas, embora o Dodó seja da família dos pombos, logo, está longe de ser um “sinônimo” de galinha.

Os Dodós habitavam as Ilhas Maurícias, na costa leste do continente africano, e foram extintos na metade do século XVII (coincidentemente o mesmo século de existência de Spinoza) época em que estas aves conviveram com colonizadores portugueses que aportaram por estas ilhas desde o século XVI. Segundo estudiosos, estas aves eram destemidas, não tendo medo das pessoas que chegavam às ilhas nem de seus cães e porcos. Ser destemido está longe de ser corajoso, embora estas duas expressões sejam em muitos casos tratadas como se fossem uma, sinônimo da outra. Ser destemido significa apenas ser desprovido de medo e muitas vezes é do medo que extraímos as potências do que chamamos coragem. Há de se ter coragem inclusive para se traçar uma linha de fuga.

Sendo a afecção em Spinoza o estado de um corpo sofrendo a ação de um outro corpo, é possível que o encontro entre os homens e os Dodós possa ser chamado de um mau encontro, especialmente para estas aves à medida em que concorreu para a diminuição na potência de ação dos Dodós e a extinção da espécie. Um encontro entre dois seres de espécies distintas, os Dodós e seu desengonçado passo, bico pesado e longo a chafurdar pelo chão com o homem, seus cães, seus porcos, seus hábitos e sua fome de colonização.

Um comentário:

Anônimo disse...

Mas é simpático o pássaro destemido dos gols bonitos.