terça-feira, 28 de setembro de 2010

As dobras do dentro e do fora de um dedo (mínimo).


Um pino, ou melhor, parafuso. Este corpo estranho atravessado, agora entranhado em meu dedo. Será assim daqui por diante. As dobras do dentro e do fora de um dedo (mínimo).

O exercício consiste em esquentar uma porção d’água, o suficiente para encher uma bacia. Esquentar até a água ficar morna e em seguida nela mergulhar a mão. Com a mão submersa n’água, tentar “suavemente” mexer o dedo mindinho, ou mínimo, da mão esquerda, “la mano sinistra”. Não há nada de suave nisso. A repetição, por vinte minutos todas as manhãs e mais vinte minutos todas as noites, dolorosa repetição. Duas vezes por dia, por pelo menos quinze dias. Preciso aprender a mexer, a dobrar o dedo, aprender de novo. Não há nada de suave nisso, em aprender, especialmente quando se trata de aprender de novo. Aprender de novo, que absolutamente nada tem a ver com reaprender. Tenho que aprender de novo, em busca de um movimento que já não consigo mais. Dou ordens a um dedo que não mais me obedece. Não esqueci como dar ordens, ainda mais a um dedo mínimo, mas ele já não me obedece mais. Dobrar o dedo. Isso me lembra os movimentos do balé, “plié”, “demi plié”, as dobras da bailarina. O dedo desobediente não quer mais se dobrar, criou após intervenção cirúrgica, uma linha catatônica, e assim cicatrizou. Preciso inventar agora uma outra linha, linha de dança, de manuseio, de tato, de dobra, inventar novos de passos de dança para a dobra de um dedo.

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

in_visível*


Invisível, tanto faz... se desfaz, ou melhor, faz e desfaz e se perde. Foge e aparece em outro lugar. Desaparece, movimenta e pára. Você acha que viu e como num piscar de olhos, você já perdeu de novo. Tentou agarrar e escapou por entre os dedos. Você sente, mas não tem o menor sentido. “Just 'cause you feel it doesn’t mean it’s there. We are accidents waiting to happen.”** O imperceptível, característica comum da mais alta velocidade e da maior lentidão. Encontro de corpos que se chocam, cujas linhas, em fluxos, se cruzam transversalmente. Perder o rosto. Quais as linhas que compõem um rosto? Perca o rosto! Em um rosto tantos segredos. “Tudo o que se torna é pura linha que cessa de representar o que quer que seja.” (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 145)***. Dar sentido(s), e mesmo assim, é quando o sorriso não tem gato, de Carroll, que o homem pode tornar-se gato, no momento em que sorri.

-Qual o invisível que me atravessa?

Atravessa e não atravessa... circunda, faz um contorno flexível criando forma e de repente se deforma. Entra pelos poros da pele e sai. Atinge outros órgãos fazendo-os funcionar de forma diferente. Ou parar de funcionar completamente.

Uma nuvem multiforme... parece carneirinho, parece floco de algodão, mas é de outra natureza. Aliás, ali se tem um encontro de naturezas bem diversas. Em estados que se modificam, em temperaturas que oscilam e velocidades que se alternam. Choveu e o gás tornou-se um líquido que evaporou. Não é só água, é mistura. Impuro, incerto. Cai e molha, e escorre, e seca. As crianças fazem festa, os fazendeiros comemoram, e de repente o excesso e a enchente. É bom e é ruim, ou nenhum dos dois. É belo, e depois... “O que é, o que é? É invisível e me atravessa...” Me atravessa e vem de fora, e está dentro. É tanto meu quanto seu. Por outro lado, não nos pertence... nos compõe e decompõe. Uma explosão de afectos, mas não só isso, ou melhor, não é só disso que é feito. Qual o efeito? E para que serve?

O invisível que me atravessa, eu não vi. Você riu? Pois é... digno de embaraço esse traço de estilo, componente de subjetivação. Pergunte ao fulano, do que se trata. Uma resposta. (Parece ser mais fácil para um outro enxergar e dizer. Pois com meus próprios olhos, me ver, é impossível.) Pergunte ao cicrano. Outra resposta. Sou capaz de uma aposta: Se é invisível, ninguém sabe, ninguém viu. Parece cena de periferia: “Tá lá um corpo estendido no chão!”. E de que afectos ele é capaz? Pois mesmo morto ele promove afectos. Estou certo?!

O invisível tem cheiro? Tem sabor? A saber, em um encontro qualquer, em um lugar sem endereço, uma aliança. Unem-se corpos que depois se separam clandestinamente. Homem? Mulher? Tanto faz. Um bando. Ah! Assim diz o clichê: “A revolução não será televisionada”. Será? E para onde eles foram? E o que restou? Acontecimento fugaz e duradouro tal qual a eternidade. É como uma noite estrelada, você enxerga o astro que não está lá. A imagem permanece, mas ela não é. Mas suas linhas de brilho lá estão. Aqui e acolá, a nos iluminar. Você segue o rastro da luz com a qual estabelece intercessão. Alguém diz: “Hum! Gosto de você” – E continuo sem saber que gosto tem. Se é salgado, se é doce...

O invisível tem som? É palpável? Talvez seja tão sutil quanto um grito e assaz perturbador, como um sussurro. Um toque por debaixo da saia da menina, um chute na canela por debaixo da mesa. O invisível caminha sobre a pele como uma formiga. Uma não, várias... em linha. Fazendo cócegas.

- Eis um rosto: bravo, manso, alegre, triste... povoado de invisíveis.

Seguir as pegadas de um bando que atravessa o deserto. A brisa vem e apaga os registros, as marcas de pé, pata e pau que riscaram a areia escaldante. O calor é intenso e o ritmo das passadas preciso, pois um oásis com água e alimento e descanso é a próxima parada. Mas onde está esse paraíso necessário à preservação da vida? Não se sabe... se chega. Todo o cuidado é pouco, pois há miragens por todos os lados e a imensidão clara é de cegar os olhos.

*Texto escrito e anteriormente postado 19/09/2005 por rfelipe em (Old)deluxxxnomadology.
**Extraído da música “There, There” do álbum “Hail to the thief” – Radiohead – 2004.
***DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. Diálogos. Trad. Eloísa Araújo Ribeiro. São Paulo, Editora Escuta, 1998.

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Quem dera ser um peixe... ou a potência do feio

Blobfish (peixe bolha), ou Psychrolutes marcidus, uma máquina, um peixe. De corpo gelatinoso é capaz de suportar as elevadas pressões do assoalho oceânico. Vive e habita territórios de difícil acesso, suporta e convive bem com as intempéries do inóspito. É considerado por muitos o mais feio dos peixes, sendo aí que reside todo o seu charme. Apesar de ameaçado de extinção em seu habitat, digamos, natural, onde é muito difícil avistá-lo, tornou-se há algum tempo figurinha fácil em blogs e portais espalhados pelos diversos confins do oceano informacional disponível pela internet afora. O curioso é que a maioria dos posts, notícias, e demais referências a esta espécie de peixe não são de tom científico, não se trata de papers ou qualquer outra fonte de informação baseada em estudos ou pesquisas, mas sim de comentários, alusões, metáforas, no geral explorando a potência da “feiúra” do bicho. Eis o charme deste que é considerado o peixe mais feio do mundo. Já não se trata mais do peixe, mas sim, da máquina-peixe e seus agenciamentos, os mais diversos, alguns profundos tal como o fundo do oceano, outros superficiais e até inapropriados.

domingo, 15 de agosto de 2010

Gadgets, soa meio Beckett isso...

(...) gadgets, soa meio Beckett isso, palavra torta, gaga, "Lady Gaga, Lady Gadget" aliás, esta artista que se traveste de gadgets, quem ainda não a assistiu no vídeo de “Bad Romance” e que com(o) os demais gadgets e as demais máquinas “fantásticas” e seus gadgets “fabulosos”, cunha através da expressão de seu corpo e filiações semióticas, os mais variados signos de leitura pop. Signos de sedução, de sensualidade, de androginia, de pastiche, de ironia, ícone pop como fetiche de mercadoria imagético-musical, “Lady Gadget, Lady Gaga”, por favor (não) nos responda o que pode um corpo.

Gadget , expressão que ganha sentido de geringonça, de dispositivo, de aplicativo informático, mas que também é utilizada na forma de conceito por alguns autores (Deleuze, Guattari, Lacan, etc...) a pronúncia no inglês pode ser experimentada aqui: http://pt.forvo.com/word/gadget/ , para quem perdeu o ar ao tentar dizê-la. E não nos esqueçamos de que gadgets que fazem falar, há gadgets que falam por nós.


segunda-feira, 26 de julho de 2010

mezzo amore*



Intermezzo: amor.


“O we will know, won't we?
The stars will explode in the sky
O but they don't, do they?
Stars have their moment and then they die”

(Nick Cave – Are you the one that I’ve been waiting for?)


A astronomia, sempre ela, a ciência que estuda o movimento dos astros, para quando estes se encontram na mais alta velocidade, ou até mesmo parados, em suas órbitas desmedidas de inércia pura. Os astros nos guiam, desde sempre. São estes os nossos modelos: o Sol, a Lua; Marte, Vênus; pai, mãe; e hoje, mais do que nunca, temos celebridades aos montes nos ensinando a viver, a amar. Temos acesso instantâneo às vinte-e-quatro horas do dia-a-dia de insossas celebridades quase-imediatas de um Big Brother Global, (acreditava-se antes que o Big Brother nos vigiava através da tele-tela... hoje quem duvida que somos nós que o vigiamos afoitos por movimentos quaisquer... numa total e patética inversão de papéis.). Nossos modelos estão por aí e se movem sorrateiros sem necessidade de passarela. São magros anoréxicos e, no entanto, fortes halterofilistas que levantam o pesado estandarte da padronização estética do belo corpo perfeito (o corpo pleno). Nas livrarias pipocam manuais, best-sellers, e uma multidão se arrasta e ainda suplica ansiosa: “Dêem-nos as respostas! - Somos pedintes no fim de feira, nos contentamos com os bagaços!”. As grandes tragédias shakesperianas hoje nada valem... é que não há mais tempo, ou, sobra tempo demais. Uma questão de duração! E nesse planeta que habitamos e que num só e mesmo golpe nos habita, quem se atreve a falar de amor? Falar só, basta? Explicar? Perguntas há aos montes... respostas, no entanto... há silêncio, a verdadeira trilha sonora de um filme, já dizia Michelangelo Antonioni. Este cineasta, mestre na manipulação dos tempos em cinema, e da estetização do desencontro humano na grande tela. O quanto nos inspira! O cinema funciona, e isto sabemos bem, tratar-se-ia do divã do pobre, como diria Guattari?


Como pedintes no fim de feira deliciamos-nos com os bagaços. Queremos modelos, mas estes indubitavelmente sempre falham. É preciso falar do amor como de um fracasso, que exige de nós uma experimentação às cegas. É questão de tato, de choque de corpos. A pergunta espinosana: “O que pode um corpo? De que afectos é capaz?” está longe de uma resposta. Mas em sua potência já é capaz de nos arrancar do confortável habitat a que nos acomodamos, e ansiosos estamos, a aguardar o chamado, com o bilhete de senha na mão. Não seremos chamados. É preciso tomar a iniciativa e se atirar. Antes um modo de existência a um modelo. Antes modos de amar a modelos. Sejamos criativos e sigamos sob o signo do desamparo. Não há mapas, a não ser que os construamos. E a pergunta que fica é a mesma que foge: “Como quebrar até mesmo o nosso amor para nos tornamos, enfim, capazes de amar? Como devir imperceptível?”(DELEUZE; PARNET, 1998, p. 59)**

*Texto escrito e anteriormente postado 16/02/2006 por rfelipe em (Old)deluxxxnomadology.

** DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. Diálogos. Trad. Eloísa Araújo Ribeiro. São Paulo, Editora Escuta, 1998.


segunda-feira, 19 de julho de 2010

A pele




Paul Valéry escreveu certa vez “O mais profundo é a pele” e tomada pelas forças desta inspiradora afirmação, a artista plástica mineira Flávia Virgínia nos convidou a uma experimentação através da qual o que está em jogo é aquela pergunta espinosista “o que pode um corpo?”.


A pele de tinta sobre a segunda pele, de tecido, que sob a forma de indumentária cobre a pele do corpo da modelo e seus poros em uma fotografia capturada em meio ao inacabado processo de devir-pintura. Tinta sobre a pele, escorrendo tal como suor a imanentizá-la na tela, na fotografia, na modelo, na indumentária... tinta porosa, tal como a pele, às vezes áspera, às vezes imperfeita, noutras vezes macia... dá uma vontade de tocar, de sentir.


Num instante, lá está, uma metamorfose que nos falseia os sentidos, aliás, a pele é o palco para o falso, pois é ela, ou melhor, através dela, que tombam melhor as noções de dentro e fora: O que está dentro de um corpo (físico, biológico) e o que está fora? A pele transborda os sentidos quando cobre o “ao redor do corpo” e a gente descobre que noções como dentro e fora mais atrapalham do que ajudam.


Textura orgânica, porosa, maior órgão do corpo humano, fronteira derradeira a definir o dentro e fora mais radical do humano, que é o falso. Pele a definir a distância absoluta da qual nos fala Blanchot: a definir, limitar e transbordar. Território de contatos e de fuga, de contágios e travessias, a pele e suas esquinas, seu calor, frieza e odores.


A pele é um tipo de revestimento paradoxal, pois consegue ser ao mesmo tempo superfície e profundidade, que na união dos poros constitui uma rede, entre-poros e suas diversas entradas e saídas que dão acesso a um sem número de coisas que entram e que saem, que atravessam o corpo naquilo que pode um corpo.

Este trabalho é parte do Encontros e Mestiçagens Culturais, exposto no Centro de Artes e Convenções da UFOP em Ouro Preto, Minas Gerais e estará disponível à visitação de 8 a 25 de julho de 2010.