quarta-feira, 24 de novembro de 2010

(...) das forças que nos escapam.


Das forças que dão forma à Vida muito pouco se extrai, o que é uma pena. É mais fácil ficar restrito ao universo das formas, dentre as quais, as ditas mais belas, costumam ser destacadas. Parece ser mais seguro e confortável ignorar o contínuo embate de forças que muitas vezes resulta nas formas, sejam estas reconhecíveis ou não. Nada de se perder entre o que as forças podem nos proporcionar antes, no meio e depois das formas

Nosso repertório de formas parece ser também muito reduzido, sendo que no mais das vezes o que importa são as formas ditas como belas, ignorando-se a possível beleza das formas taxadas de não belas. Por outro lado, vasta é a quantidade de definições a piori, é só escolher e encaixar em padrões de toda sorte, do belo e do não belo, rótulos e categorias, produção em larga escala do mesmo em forma pura.

Quase sempre surge o implacável medo das forças. Especialmente das forças que nos escapam, ou que escapam às formas, ou que delas não dependem. Experimentar um desvio absoluto de padrão, linhas de fuga, invenções? Jamais! Se for para fugir que seja encaixando no desvio padrão já esperado, previsível, prêt-à-porter, a um passo da captura insossa.

Cabe ressaltar que as formas têm duração finita, não permanecendo ad infinitum ao dispor de nossas fruições.

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Um suspiro... Oh Vida curta! O que não é intenso não me interessa.

Nas praias da imanência de uma Vida e suas virtualidades, com ondas que quebram na areia, eu tento aprender a surfar com Deleuze, meu professor de surf predileto, ou ao menos a pegar um jacarezinho para não levar um caldo.

A Vida à altura de seus acontecimentos, tal como nos ensinou o bigodudo do martelo, Nietzsche, certamente inspirado na concepção de destino das “fábulas” dos Estóicos: “O guerreiro dá um passo e é atingido pela flecha. Se não morre, passa a viver uma Vida outra, após a flechada e os limites que esta lhe impõe.”. Há ondas violentas mesmo, mas o que nos derruba, no mais das vezes, é o medo que temos de perder o equilíbrio.

O mais delicado e o mais sutil são de uma intensidade absurda. Há ocasiões em que um suspiro se equivale a uma onda. O mar suspira em ritmos variados. Surfar em meio a suspiros pode ser uma tarefa ofegante.

Neste instante, tal como numa onda, e eu nem sei ainda o que move o mar, tampouco o que pode um corpo, mergulho nas águas turvas e geladas da memória, mas as lembranças que chegam tem mais a ver com o futuro do que com o pretérito.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Bienvenue, para onde vamos?


N’outros tempos, outras barricadas, outros desejos, anseios de uma revolução. Por agora, greve geral na França, novamente. Essas ruas há muito estavam vazias, ou melhor, esvaziadas. Pois não basta perambular pelas ruas, é preciso ocupá-las. São as urgências de hoje, não as de ontem, com a multidão de agora e de sempre que animam esta greve que já dura semanas na França. As ”barricadas do desejo” de outrora, do famoso maio francês de 68 não são as mesmas de hoje, pois aquelas já passaram, e as dos nossos dias também estão a passar. A revolução não dura para sempre, mas pode ser eterna em muitos dos seus mais delicados gestos. Nos idos de 1980 Guattari nos alertou quanto ao terror dos “Anos de Inverno”, tempo morto Kantiano, em que nada se produz, em que não há revolta e sim aceitação, acomodação, colaboração. Para este camarada, que viveu a primavera dos anos de 1960, suas implicações e engajamentos, o paradeiro, a indiferença, a ausência de movimento são tão gelados e sofridos como uma espécie de morte em Vida. As ruas estão logo ali, com suas esquinas, e nós, para onde vamos?

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Nós, um pronome (ainda) perigoso


"I believe in miracles, I believe in a better world, for me and you.” – Ramones

Nossos dias e seus desafios, ou melhor, nossos desafios.


Nós, quando foi a última vez que você evocou este pronome? Ou quando vai ser, de fato, a sua primeira vez? Sim, quando vai ser a sua estréia? Que seja agora, pois há urgências em demasia, espalhadas por toda parte, rondando as esquinas.


Somos convocados pelas urgências de cada esquina, a cada passo, a cada fôlego, podemos aceitar nos implicar com estes desafios que a partir de nossa decisão se tornam nossos e fazer micropolítica, ou não. Eis uma escolha que não permite neutralidade - "A neutralidade é verde, a tristeza é azul e a alegria é vermelha." Os desafios são nossos, ou se tornam nossos na medida de nossas implicações. Implicações, tal como os institucionalistas franceses, e destaco aqui especialmente as contribuições de Lourau e Lapassade, definem este termo, levando-nos a fazermos cotidianamente a análise de nossas implicações. Naquilo que no âmbito individual e também coletivo nos atravessa, nos mobiliza, nos move, nos comove, nos paralisa, nos subverte, nos desassossega, etc.


Nós, pronome raro em sua força, não tão raro em sua freqüência de utilização. Mais mal tratado no dia a dia do que utilizado no grau máximo de sua potência, naquilo que o “nós pode”. Nas muitas oportunidades em que é evocado, isso se faz de modo no geral tão banalizado, que no mais das vezes, quando me incluem nesse coro, eu corro e prefiro ficar fora. Se utilizado de maneira apressada, o nós, tal como um nó frouxo, serve apenas para agrupar um amontoado de indivíduos e suas vaidades.


É que já experimentei os riscos deste pronome perigoso e não quero ser envolvido quando envolvimento não há. Nós, o pronome perigoso, como Richard Sennett bem ressaltou em seu livro “A corrosão do caráter: conseqüências pessoais do trabalho no novo capitalismo”, pois pode nos permitir acionar e conectar as raras forças de resistência de um coletivo, no sentido de invenção de modos de Vida em comum, daquilo que advém das alianças capazes de fazer de um lugar uma comunidade.


É nesse sentido que eu acredito em milagres, acredito num mundo melhor para nós todos. E do milagre podemos criar uma utopia ativa.

terça-feira, 28 de setembro de 2010

As dobras do dentro e do fora de um dedo (mínimo).


Um pino, ou melhor, parafuso. Este corpo estranho atravessado, agora entranhado em meu dedo. Será assim daqui por diante. As dobras do dentro e do fora de um dedo (mínimo).

O exercício consiste em esquentar uma porção d’água, o suficiente para encher uma bacia. Esquentar até a água ficar morna e em seguida nela mergulhar a mão. Com a mão submersa n’água, tentar “suavemente” mexer o dedo mindinho, ou mínimo, da mão esquerda, “la mano sinistra”. Não há nada de suave nisso. A repetição, por vinte minutos todas as manhãs e mais vinte minutos todas as noites, dolorosa repetição. Duas vezes por dia, por pelo menos quinze dias. Preciso aprender a mexer, a dobrar o dedo, aprender de novo. Não há nada de suave nisso, em aprender, especialmente quando se trata de aprender de novo. Aprender de novo, que absolutamente nada tem a ver com reaprender. Tenho que aprender de novo, em busca de um movimento que já não consigo mais. Dou ordens a um dedo que não mais me obedece. Não esqueci como dar ordens, ainda mais a um dedo mínimo, mas ele já não me obedece mais. Dobrar o dedo. Isso me lembra os movimentos do balé, “plié”, “demi plié”, as dobras da bailarina. O dedo desobediente não quer mais se dobrar, criou após intervenção cirúrgica, uma linha catatônica, e assim cicatrizou. Preciso inventar agora uma outra linha, linha de dança, de manuseio, de tato, de dobra, inventar novos de passos de dança para a dobra de um dedo.

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

in_visível*


Invisível, tanto faz... se desfaz, ou melhor, faz e desfaz e se perde. Foge e aparece em outro lugar. Desaparece, movimenta e pára. Você acha que viu e como num piscar de olhos, você já perdeu de novo. Tentou agarrar e escapou por entre os dedos. Você sente, mas não tem o menor sentido. “Just 'cause you feel it doesn’t mean it’s there. We are accidents waiting to happen.”** O imperceptível, característica comum da mais alta velocidade e da maior lentidão. Encontro de corpos que se chocam, cujas linhas, em fluxos, se cruzam transversalmente. Perder o rosto. Quais as linhas que compõem um rosto? Perca o rosto! Em um rosto tantos segredos. “Tudo o que se torna é pura linha que cessa de representar o que quer que seja.” (DELEUZE; PARNET, 1998, p. 145)***. Dar sentido(s), e mesmo assim, é quando o sorriso não tem gato, de Carroll, que o homem pode tornar-se gato, no momento em que sorri.

-Qual o invisível que me atravessa?

Atravessa e não atravessa... circunda, faz um contorno flexível criando forma e de repente se deforma. Entra pelos poros da pele e sai. Atinge outros órgãos fazendo-os funcionar de forma diferente. Ou parar de funcionar completamente.

Uma nuvem multiforme... parece carneirinho, parece floco de algodão, mas é de outra natureza. Aliás, ali se tem um encontro de naturezas bem diversas. Em estados que se modificam, em temperaturas que oscilam e velocidades que se alternam. Choveu e o gás tornou-se um líquido que evaporou. Não é só água, é mistura. Impuro, incerto. Cai e molha, e escorre, e seca. As crianças fazem festa, os fazendeiros comemoram, e de repente o excesso e a enchente. É bom e é ruim, ou nenhum dos dois. É belo, e depois... “O que é, o que é? É invisível e me atravessa...” Me atravessa e vem de fora, e está dentro. É tanto meu quanto seu. Por outro lado, não nos pertence... nos compõe e decompõe. Uma explosão de afectos, mas não só isso, ou melhor, não é só disso que é feito. Qual o efeito? E para que serve?

O invisível que me atravessa, eu não vi. Você riu? Pois é... digno de embaraço esse traço de estilo, componente de subjetivação. Pergunte ao fulano, do que se trata. Uma resposta. (Parece ser mais fácil para um outro enxergar e dizer. Pois com meus próprios olhos, me ver, é impossível.) Pergunte ao cicrano. Outra resposta. Sou capaz de uma aposta: Se é invisível, ninguém sabe, ninguém viu. Parece cena de periferia: “Tá lá um corpo estendido no chão!”. E de que afectos ele é capaz? Pois mesmo morto ele promove afectos. Estou certo?!

O invisível tem cheiro? Tem sabor? A saber, em um encontro qualquer, em um lugar sem endereço, uma aliança. Unem-se corpos que depois se separam clandestinamente. Homem? Mulher? Tanto faz. Um bando. Ah! Assim diz o clichê: “A revolução não será televisionada”. Será? E para onde eles foram? E o que restou? Acontecimento fugaz e duradouro tal qual a eternidade. É como uma noite estrelada, você enxerga o astro que não está lá. A imagem permanece, mas ela não é. Mas suas linhas de brilho lá estão. Aqui e acolá, a nos iluminar. Você segue o rastro da luz com a qual estabelece intercessão. Alguém diz: “Hum! Gosto de você” – E continuo sem saber que gosto tem. Se é salgado, se é doce...

O invisível tem som? É palpável? Talvez seja tão sutil quanto um grito e assaz perturbador, como um sussurro. Um toque por debaixo da saia da menina, um chute na canela por debaixo da mesa. O invisível caminha sobre a pele como uma formiga. Uma não, várias... em linha. Fazendo cócegas.

- Eis um rosto: bravo, manso, alegre, triste... povoado de invisíveis.

Seguir as pegadas de um bando que atravessa o deserto. A brisa vem e apaga os registros, as marcas de pé, pata e pau que riscaram a areia escaldante. O calor é intenso e o ritmo das passadas preciso, pois um oásis com água e alimento e descanso é a próxima parada. Mas onde está esse paraíso necessário à preservação da vida? Não se sabe... se chega. Todo o cuidado é pouco, pois há miragens por todos os lados e a imensidão clara é de cegar os olhos.

*Texto escrito e anteriormente postado 19/09/2005 por rfelipe em (Old)deluxxxnomadology.
**Extraído da música “There, There” do álbum “Hail to the thief” – Radiohead – 2004.
***DELEUZE, Gilles; PARNET, Claire. Diálogos. Trad. Eloísa Araújo Ribeiro. São Paulo, Editora Escuta, 1998.

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Quem dera ser um peixe... ou a potência do feio

Blobfish (peixe bolha), ou Psychrolutes marcidus, uma máquina, um peixe. De corpo gelatinoso é capaz de suportar as elevadas pressões do assoalho oceânico. Vive e habita territórios de difícil acesso, suporta e convive bem com as intempéries do inóspito. É considerado por muitos o mais feio dos peixes, sendo aí que reside todo o seu charme. Apesar de ameaçado de extinção em seu habitat, digamos, natural, onde é muito difícil avistá-lo, tornou-se há algum tempo figurinha fácil em blogs e portais espalhados pelos diversos confins do oceano informacional disponível pela internet afora. O curioso é que a maioria dos posts, notícias, e demais referências a esta espécie de peixe não são de tom científico, não se trata de papers ou qualquer outra fonte de informação baseada em estudos ou pesquisas, mas sim de comentários, alusões, metáforas, no geral explorando a potência da “feiúra” do bicho. Eis o charme deste que é considerado o peixe mais feio do mundo. Já não se trata mais do peixe, mas sim, da máquina-peixe e seus agenciamentos, os mais diversos, alguns profundos tal como o fundo do oceano, outros superficiais e até inapropriados.