Ainda nos é possível, nos dias de hoje, escrevermos um grande livro, lentamente, endereçando-o a um leitor, digamos, intemporal?
Nossa escrita tem sido cada vez mais desafiada por regimes de tempo sempre vindouros, assaz velozes e vertiginosos. O tempo em seus mais variados regimes, recurso imaterial que o é, não nos pertence à priori e é de suma importância, pois determina a qualidade de nossos encontros. O tempo é par excellence a unidade de medida dos encontros, associado ao espaço, tempo e espaço, e a escrita associada à leitura tem chances de potencializá-los. Quem tem tempo hoje para digerir bovinamente, tal como Nietzsche nos sugeria, um texto aqui, outro acolá? Eis uma possibilidade de encontro com Nietzsche. E à época de Nietzsche, será que seus leitores desfrutavam deste tempo para um “devir-vaca” de seus leitores? Talvez hoje não tenhamos de fato este tempo disponível, mas salvo engano, esta mesma justificativa, a de não termos tempo, já foi utilizada ostensivamente em outras épocas e se perpetuará. Os problemas de hoje a antecipar os destinos do amanhã, enlameados com as marcas do passado, tempos irremediavelmente imbricados pelas vertigens de seus paradoxos com suas tramas de inversões e virtualidades. Tal como Deleuze, cada época tem seus problemas, suas máquinas, logo, o falso saudosismo não nos é de grande valia, pois nos faz perder o foco daquilo que realmente define a nossa sorte, os verdadeiros problemas, chez Bergson. Talvez o que torne um livro algo intemporal e o seu leitor idem, não seja somente a sua escrita, mas sim esta associada à(s) leitura(s), ou os agenciamentos coletivos que este exercício suscita e dispara, com suas virtualidades. A escrita carece de leitura(s). Leitura esta que não se dá de modo imune aos efeitos dos afectos presentes aquém e além das letras. Somos leitores sensíveis, mesmo quando estamos diante das asperezas de um livro estritamente técnico. Sustento também a idéia de que os livros, em quaisquer formatos, escritos hoje ou por vir, serão sempre datados, logo, não acredito que haja qualquer livro atemporal. No limite, penso que mesmo aqueles livros que nos permitem avistar as raspas de um futuro ainda estarão encerrados nas fronteiras do possível no presente. O hipertexto e os inúmeros formatos de livro a serem disponibilizados num Kindle, num IPad, num Smartphone ou parafernálias parecidas, não definem antecipadamente perda de conteúdo, podem sim nos dar a chance de experimentarmos novas formas. Forma e conteúdo! Há debates aqui e acolá sobre a forma-livro que se reduzem ao profético fim do livro e há também olhares atentos dos críticos profissionais e amadores quanto ao conteúdo das escrituras no mundo. Lembro-me de ter lido uma entrevista de Umberto Eco em que ele dizia que se deixasse cair um Kindle do 7º andar de um prédio, seus 500 livros ali arquivados seriam irremediável e imediatamente destruídos. Agora, caso ele deixasse cair um livro no seu formato tradicional, haveria a chance de recuperação de praticamente todo o seu conteúdo. O que me assusta, sem me deixar lançar ao maniqueísmo de dizer que é bom ou ruim, provém do fato de que me parece que estamos hoje mais suscetíveis aos efeitos da lógica dos blogs, digo, dos microblogs, o menor espaço de escrita no mais breve gesto de escritura. Não se trata de uma escrita fragmentária, mas sim de uma escrita que pode perder potência frente à pressa. Tudo sempre a um só fôlego, a uma só braçada, degustação imediata de saberes-sabores perecíveis, que deverão ser digeridos também a uma só garfada. E isso pode exacerbar em nós a pressa, famosa inimiga das velocidades. Esta lógica tem influenciado também as nossas conversações fora da escrita, fora também da Internet.
Um comentário:
Belo post, por vezes a pressa não é inimiga das boas ideias, penso que é a isto que chama velocidade.
Os processos de agenciamento são hoje muito mais velozes, com tempos de vida curtos, uma vida, como refere, de um só fôlego.
Mas apesar das indicações "bovinas" de Nietzsche acerca da boa leitura, também gosto de debicar, aqui e ali, leituras leves, sem pretensões a empanturrar o estômago do leitor.
A leitura não deve ser um rito sagrado, mas uma conversa com alguém inteligente e indulgente.
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